quarta-feira, 16 de setembro de 2015


RESUMO

Rio de Janeiro, 1983, uma mãe viciada em drogas, amamenta seu filho. Surpreendida pela invasão de sua casa pelo chefe do tráfico local, e não podendo quitar suas dívidas com o traficante, seu filho é capturado como pagamento e criado pelo então chefe do tráfico como seu próprio filho ao longo dos 10 anos vindouros em meio ao mundo do crime. Sandro, assim chamado, tinha uma mãe “adotiva” que foi morta por ladrões que a degolaram. Continua sua vida sendo criado por uma tia, também adotiva, quando em uma súbita curiosidade acerca do mundo “além mar” (Conhecia somente aquele mundo da favela), embalado por lembranças de sua Mãe “adotiva” que sempre divagava sobre oportunidades de melhoria de vida trabalhando no Bairro de Copacabana, resolve conhecer o bairro, e lá Sandro começa uma nova história. Passa a conviver com “meninos de rua” que se estabeleceram nas marquises do entorno da Igreja Candelária onde então passa a ter acesso ao mundo das drogas e realizar pequenos assaltos para sobreviver. Sandro, já com 17 anos, vê seus amigos de rua serem assassinados por ações de grupos de extermínio (Chacina da Candelária), e salvando-se da situação, entra em cena Walquíria, que realiza um trabalho voluntário junto a meninos de rua, e daí surge a esperança de Sandro, mesmo não sabendo ler e escrever, em ser um famoso compositor de rap. É recolhido em seguida por porte de drogas para um instituto de recuperação de menores, onde conhece sua mãe genitora através das coincidências da vida, além de conhecer Alessandro, que exercendo forte vínculo de amizade, ao fugirem do instituto, passa a praticar crimes de maior relevância com seu novo amigo, até quando então traído pelo amigo em um relacionamento com sua “namorada”, Sandro, revoltado, em súbito momento embarca no ônibus da Linha 174 - Humaitá, e a partir dali , fica traçado o fim de sua história.

Palavras Chaves: Candelária, Ônibus 174, Drogas, Tráfico, Meninos de Rua

ABSTRACT

Rio de Janeiro, 1983, a drug addicted mother, breastfeeding her son. Surprised by the invasion of his home by the head of local traffic, and can not repay their debt to the trafficker, his son is captured as payment and then created the drug boss as his own son over the 10 years to come unto the world of crime. Sandro, so called, had a "adoptive" mother who was killed by the robbers beheaded. Continues his life being raised by an aunt, also adopted, when on a sudden curiosity about the world "beyond the sea" (He knew only that the world of the favela), packed with memories of his Mother "adoptive" always rambled on improvement opportunities life working in the neighborhood of Copacabana, solves know the neighborhood, and there Sandro begins a new story. Goes to live with "street kids" who settled in the marquees around the Candelária Church which then gains access to the world of drugs and perform petty theft to survive. Sandro, now 17, sees his friends being murdered by street actions of death squads (Slaughter of Candelária), and saving the situation, enters the scene Walquiria, who performs volunteer work with the street children and hence arises the hope of Sandro, not even knowing how to read and write, to be a famous composer of rap. It is then collected for drug possession for an institute recovery minors, where he met their mother through the mothers' coincidences of life, and Alessandro know that having a strong bond of friendship, to flee the institute, going to practice greater crimes relevance with her new friend, even when thenbetrayed by his friend in a relationship with his "girlfriend", Sandro, revolted in sudden moment boards the bus Line 174 – Humaitá, and from there, tracing is the end of his story.

Key Words: Candelária, Bus 174, Drug Trafficking, Street Children


1. INTRODUÇÃO

A notícia do sequestro de um ônibus em plena zona sul na cidade do Rio de Janeiro, poderia ser mais um preenchimento de espaços em reportagens corriqueiras sobre crimes praticados em todo o Brasil, no entanto o incidente que aconteceu em 12 de junho de 2000, foi filmado e transmitido ao vivo por quatro horas, paralisando todo o país. 

No filme, a história do sequestro em si compõem somente seus instantes finais, levando aquele que o assiste a caracterizar as consequências advindas da história real de vida do sequestrador que se revela como um típico menino de rua carioca que transformou-se em bandido. 

Com o fim trágico de uma de suas vítimas naquele ônibus pela arma que portava, e logo após seu próprio fim, concretiza-se a sequência de acontecimentos ao longo da vida daquele sequestrador que culminaram na construção daquele momento trágico, acontecimentos estes permeados pelo crime e pelas mazelas que a sociedade lhe “brindou” e que o submeteu desde seu nascimento. 

O filme nos mostra que tudo aquilo que acontece no presente tem seu fundamento no passado, mudar o passado não é possível, mas garantir hoje no presente um futuro melhor, é perfeitamente factível. 
“Quando analisamos crimes nunca consideramos os fatos pretéritos e futuros relacionados aos criminosos, logicamente que situações vividas jamais justificarão a prática de delitos, principalmente os violentos, porém servem como base para entendermos as circunstâncias ou motivações”[1]
Um crime, seja menor ou maior, é construído dentro e pela própria sociedade, tudo em um ato inconsciente de autoflagelação desta consciência torpe e coletiva que chamamos de “senso comum”, uma consciência punitiva acerca do outro, mas confortadora para o seu próprio eu, o “eu” irresponsável, egoísta e díspar com o primaz e sagaz senso social. 

Olhar o crime sob a ótica da Lei é racional, olhar o crime sob a ótica da criminologia é lógico, no entanto, olhar o crime sob a ótica da vida é prudente. 

Isto posto, observaremos “de binóculos” , de longe, fora do senso comum os “crimes” retratados no filme com prudência, pela ótica da vida, pelo senso real e social, sem deixar de destacar que toda interpretação que não é abarcada pelo senso comum, sempre será aos olhos do mundo uma grande imprudência.


2. MÉRITO SOB OS ASPECTOS PENAIS DO FILME.

Torna-se mister, antes de analisar os aspectos penais dentro do contexto e conteúdo do filme em questão, verificar a existência ou não de crimes com olhar do senso social que enaltece e observa detalhes imperceptíveis da realidade que nos cerca.

O mérito sob aspectos penais no filme não pode ser analisado simplesmente sob a égide do stricto senso, pois assim estaríamos apenas tipificando crimes , nem tão pouco pela visão tendenciosa ou preconceituosa de nossos julgamentos, pois iríamos ao desencontro a três grandes princípios do direito penal, o Princípio da Humanidade, o Princípio do Estado de Inocência e o Princípio da Igualdade, sem deixar de observar demais princípios, que embora tenham mesma valoração, são melhor aplicados nas questões de ordem técnica intrínsecas ao crime tipificado, ao seu objeto, sem a aplicação valorativa do sujeito/agente.

Se houver a concentração tão somente nas questões criminais que envolvem o então personagem Sandro em sua vida, o que parece ser o mais adequado para este relatório, de antemão já podemos nos colocar a frente da imputabilidade tanto versada no art. 26 do Código Penal, como também o art. 27 do mesmo diploma, o que seria o mais coerente para a tratativa do mérito em questão por tratar da história de vida de uma criança que veio, ainda enquanto adolescente, 17 anos, dentre todos os crimes realizados durante sua vida, praticar um destes que comprometeu a vida de outra pessoa e a sua própria.

Por outro lado, as situações de vida do personagem, que representa não tão somente a vida real do menino Sandro, mas também a vida de milhares daqueles que estão e estarão em mesma mazela, nos remete a invisibilidade da situação, uma invisibilidade do miserável e seu sofrimento , que uma vez invisível, o problema social e o risco tornam-se inexistente, tal como nos explica o antropólogo Luiz Eduardo Soares[2], quando nos coloca a identificar duas maneiras de produzir invisibilidade nos invisíveis, uma considerando-os animais brutos, ou seja, seres inferiores sem importância, e outra considerando-os perigosos ou marginais, a própria criminalização da miséria.

O primeiro método de construção da invisibilidade nos coloca protegidos da responsabilidade social e com nosso meio, e o segundo, o invisível já farto de sua invisibilidade passa a existir quando este realiza um delito, e tão somente quando realiza, pois até então não se tem importância à sua miséria que transmutou em invisibilidade, “...é com a presença do medo que desperta em nós, que o invisível recupera sua visibilidade, sua autoestima, sua existência...”.[3] É justamente nesta caricatura da invisibilidade que se constrói o crime e seus aspectos mais abstratos.

Sandro, nasceu em berço miserável, filho de mãe solteira, viciada, moradora de umas das favelas do Rio de Janeiro. Foi raptado por um chefe do tráfico como pagamento de dívida de drogas. Cresceu ao centro do entorno da criminalidade. Viu sua mãe adotiva ser degolada por assaltantes. Viveu nas ruas. Aprendeu a usar drogas, viciou-se, praticou pequenos furtos, viu seus amigos de rua serem assassinados, passou a praticar mais crimes com maior relevância e violência. Não conseguiu ser recuperado por sua Mãe “genitora “, mesmo com grande luta e afago materno. Sequestrou um ônibus, colocou passageiros sob perigo e ameaça, matou uma de suas reféns e foi morto pela polícia ao seu transporte na viatura policial.

O crime “final” e derradeiro da vida de Sandro, sem desprezar outros tantos realizados ao longo de sua vida enquanto menino de rua e assaltante, foi construído, e não há aspecto técnico jurídico que possa fundamentar esta construção, não será a regra comum do concurso de pessoas do Art. 29 do Código Penal, quando sob a moto de seu amigo, praticando um assalto, este último assassina uma motorista no trânsito por esta deixar cair a bolsa dentro do carro, não será a tipicidade do homicídio qualificado no art. 121 § 2o, inc. II do Código Penal, nem a lesão corporal, nem o crime de furto, nem o de roubo com ou sem grave ameaça ou emprego de violência, nem o de tráfico de entorpecentes ou porte de drogas. O que justifica a construção do crime, são causas pretéritas sociais que moldaram o caráter do cidadão, determinaram seus valores, e mantiveram sua invisibilidade aos olhos do mundo, tudo isso potencializado pelo Estado Policial incompetente e truculento que caça os invisíveis transmutados da miséria social provocada pelo próprio Estado protetor e punitivo, é uma roda constantemente a girar, um ciclo de valoração da culpa e da punição que se agrava com a desvalorização da educação e falta de oportunidades reais de vida digna ao cidadão.

Com amplitude, pode-se então observar que os aspectos penais do filme, não se destacam em questões que os tipificam, mas sim aqueles que os justificam, são aqueles construídos pela própria criminalização da miséria, a concretização do poder imanente do senso comum ditado pelo Estado e pelos ditos bons e demasiados humanos, que preferem punir a miséria à evolução do senso social. 

Sem o senso social, não se observará nada além de crimes, culpas e punições, são formas jurídicas e menos humanas de corrigir os delitos da sociedade. É a forma paliativa de parar a dor, muito distante de curar a mesma dor que se acomete. 

O senso comum, aquele que molda os aspectos penais com fulcro ao pensamento que racionaliza a lei e dá lógica à criminologia, ainda é um doente.

Sandro não é nem menos nem mais vítima do sistema imperativo estatal, tão somente o é, e aquilo que justificou a construção do crime conhecido como “O sequestro do ônibus 174” foram aspectos penais consequentes de seu estado social e principalmente da maneira como a sociedade o percebeu ao longo de sua vida. 

Sandro, foi um invisível que passou a ser percebido através do próprio resgate de sua visibilidade, sem deixar passar a chance de construir o seu existir, a própria verdade e mensagem entorno do filme “Última Parada 174”! 


3. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O senso comum é seletivo, infelizmente prevalece sobre o senso social, faz amordaçar a minoria e constrói, em matéria criminal, o Direito Penal que tem por aplicação imediata regular as relações do indivíduo com a sociedade, e como aplicação mediata “...eleger alguns indesejados, aquelas pessoas que delas queremos [senso comum] nos livrar, aquelas de quem temos asco profundo, ou seja, o outro, para destruí-los...”[4]

Este mesmo senso comum, defendido pelos costumes que estão sempre aquém dos critérios sociais em sentido lato sensu, compreendido principalmente pelos critérios socioeconômicos, socioeducativos e sócio laborais, faz com que toda relação de equidade que preenche uma das formas de procedimentos interpretativos das normas penais seja distorcida e imediata, procurando antes de tudo a culpa que precede certamente à uma punição, é a expressão do caráter predominante na sociedade em suas leis que revela não o que é, mas o que lhe parece estranho, estrangeiro, singular ou extraordinário[5].

É nessa sociedade, como diz Nietzsche[6] que um ser natural, vindo das montanhas ou das aventuras do mar, degenera em criminoso, e diferente não é a situação da grande maioria dos criminosos, em especial, aqueles imputáveis, crianças e adolescentes, que surgem com seu ódio reprimido abordando a sociedade seletiva com a construção do seu crime, e desaparecem desta mesma sociedade pelo mesmo motivo de sua seleção, o ódio ao ser estranho que veio das montanhas ou das aventuras do mar.

A seletividade do senso comum bem compreendida é bruta , selvagem e ao mesmo tempo espetacular, com tudo ou com menos, consegue abstrair suas responsabilidades sociais, provocar a invisibilidade da miséria, e colocar no panteão da humanidade as ações restritivas e sancionadoras da Lei quando mal interpretada e do Estado policial como garantia da ordem, no entanto, não observa que o invisível, em seu grito silencioso, pede atenção, pede ajuda, pede sua inclusão, e quando não visto ou ouvido, provoca seu existir exaltando seu ódio contra a seletividade que o declinou da boa vida social , da cidadania e principalmente das oportunidades da vida. 

O senso comum tipifica, julga e pune, enquanto o senso social, justifica, avalia e procura a solução. Unir ambas maneiras de pensar o coletivo e o crime concretamente, pode ser a solução interpretadora das leis penais, sem ofuscar as sanções que lhe são caras, mas clarificar a culpa, a impunidade e por fim, estabelecer a real equidade a que se julgam nossas leis. 
“Uma ação em si, é absolutamente vazia de valor, tudo depende de quem a comete. Um único e mesmo “crime” pode ser em um caso o privilégio supremo, noutro a ignomínia. Na verdade, isto depende da própria voracidade de quem julga, de quem interpreta uma ação, eventualmente o autor, em relação ao proveito ou aos danos próprios”[7]
Enquanto houver a valoração da culpa do “outro”, a exigibilidade exacerbada da pena para o “outro”, e até mesmo o desejo de extinção do “outro”, sem contudo antes seja realizada a avaliação amiúde dos motivos justificáveis dos respectivos aspectos penais, outros “Sandros”, descerão a montanha e virão de suas aventuras de além mar preencher e preocupar o lindo e belo estado social construído pelo senso majoritário comum da sociedade.


4. BIBLIOGRAFIA 

CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas (algo sobre Nietzsche e o Direito). Editora Lumen juris, Rio de Janeiro - RJ, 2013

Documentário: Invisibilidade Social - Ônibus 174, Edição e Legendas por Prof. Helcinho Taliban, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=HsduaLwAg-A> Acesso em: 19 jul 2014 

JESUS, Damásio E. de, Direito Penal 1 – Parte Geral – 24ª Ed. – Volume 1 – Editora Saraiva, São Paulo – SP, 2001 (*)

___________________, Direito Penal 2 – Parte Especial – 24ª Ed. – Volume 2 – Editora Saraiva, São Paulo – SP, 2001 (*)

MASCARENHAS, Fábio. “Última Parada 174”. Resenha. Disponível em < http://fmascarenhas.wordpress.com/2010/12/24/ultima-parada-174/> Acesso em 19 jul 2014.

Produção Cinematográfica: Última parada 174 ( Moonshot Pictures ), dirigido por Bruno Barreto e escrito por Bráulio Mantovani, Brasil, 2008, disponível em <http://megafilmeshd.net/ultima-parada-174/> Acesso em 19 jul 2014.

(*) Fontes tão somente de consultas


[1] V. MASCARENHAS, Fábio. “Última Parada 174”. Resenha. Disponível em < http://fmascarenhas.wordpress.com/2010/12/24/ultima-parada-174/> Acesso em 19 jul 2014

[2] Luiz Eduardo Soares (12 de março de 1954, Nova Friburgo) Antropólogo, Cientista Político e Escritor brasileiro. Na carreira de escritor, Soares foi co-autor dos best-sellers Elite da Tropa e Elite da Tropa 2.

[3] Entrevista de Luiz Eduardo Soares no vídeo Invisibilidade Social - Ônibus 174 (PARTE 2), Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=8uQ7W1Hewlk> Acesso em 20/07/2014.

[4] CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas (algo sobre Nietzsche e o Direito). Editora Lumen juris, Rio de Janeiro - RJ, 2013 p.129.

[5] ibidem, p.131

[6] CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas (algo sobre Nietzsche e o Direito) p. 131 apud Nietzsche. Crepúsculo dos Ídolos, p.86 n. 43

[7] CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas (algo sobre Nietzsche e o Direito) p.132 apud Nietzsche. Escritos Sobre Direito, p.272, XIII 10[47]127

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